Tuesday, November 23, 2010

Passeio (da paisagem ao sobrenatural)


Passeio aleatoriamente pelo Marais. Rue des filles du calvaire, rue Vieille du Temple. As lojas de estilistas independentes, as montras cheias de design, Rue Charlot, as galerias de arte, Rue Poitou, mais galerias. Raparigas lindíssimas. Desço em direcção à Rue de Rivoli. Um frio magnífico. Reparo no pêlo cuidado dum cão enorme dentro duma loja minúscula dedicada a não sei quê. Baguetes enfiadas à pressa na mochila. Bicicletas lindíssimas. Rue du Roi de Sicile.
Mais abaixo viro à direita e entro numa das zonas mais movimentadas da cidade. A violenta aparição dos carros. Sigo. Quase em Hôtel de Ville. Lojas pantagruélicas, néons. Mudo de direcção, o rio, vou para a raiz da cidade. Um carrocel onírico desligado, cães finérrimos, vagabundos deitados no chão. Depois do alcatrão entrevejo já o brilho irregular da água.
E é aí, quando as paredes cessam, que no céu negro aberto surge o clarão da torre Eiffel. Um farol rotativo que varre o tecto da cidade perfurando a neblina nocturna. O círculo que desenha no céu, como um cromeleque de luz, é a referência mágica primordial da cidade. Debaixo de si, o território todo se une.

Sunday, November 7, 2010

A física das multidões


Eis a desobediência: o semáforo está vermelho mas todos passam. Não são carros, outro veículo circula - o corpo transportando a sua determinação. É o escárnio em todo o seu esplendor, uma multidão que avança desprezando o ritmo mecânico das leis.
Há um ar fascinante sobre as ruas durante uma manifestação. Toda a lógica de uma cidade se suspende. Poderíamos mesmo dizer que se trata de loucura. Que fazem eles? Que lhes deu? Não é isso que nos ensinam na escola.
Uma força misteriosa, vinda de um lugar obscuro, junta milhares de pessoas num local. Elas vêm para espancar a realidade. Incendiar a semântica. Executam-no apenas através da sua presença.
Na verdade, há um único ser que se move numa manifestação - o grupo. A acção síncrona de uma massa é como a receita de um feitiço. Ela faz irromper por momentos uma nova existência no mundo, uma outra dimensão no espaço. Aí reside a chave. O ar impregnado de fascínio diz estarmos perante uma física quântica das multidões.

Tuesday, November 2, 2010

A luz viva

Esqueçamos as pessoas. Há um outro ser que habita Paris - a luz. A sua presença atinge os nervos, sentimos a sua voz.
É Outono e a luz natural demora-se cada vez menos pelos boulevards. Começa já a espreguiçar-se cedo sobre as casas e suas íngremes mansardas em tons lânguidos de vermelho.
A luz é um ser em simbiose com as coisas. Toca-lhes e elas brilham - é através desta relação que percebemos a existência de ambas. A claridade aqui não fere os olhos, abraça-os com veemência.

Alheia à tumultuosa presença humana, a luminosidade repete a sua carícia dia após dia, num ritual milenar de volúpia.

Ou a luz como cidade